Entrevista: Jordi Sanchéz-Cuenca e a funcionalidade das cidades

Na segunda-feira (19), a FADISMA recebeu o professor espanhol Jordi Sanchéz-Cuenca, referência internacional em Arquitetura e Urbanismo, para um bate-papo com os alunos do curso de Direito. O tema da conversa foi “O déficit habitacional e a pobreza urbana no Brasil a partir de uma análise crítica desde a perspectiva do direito à cidade”.

A atividade foi proposta pelo Núcleo de Estudos de Direito Internacional (NEDI) e pelo Núcleo de Direito Ambiental e Urbanístico (NUDAU), juntamente com o Professor Alberto Goerch.

Jordi concluiu sua graduação na Escola Técnica Superior de Arquitetura de Barcelona, posteriormente, cursou mestrado em Desenvolvimento Urbano na University College de Londres. Ao longo da carreira, possui mais de 13 anos de experiência em atuação internacional na área de Arquitetura e Urbanismo, junto à ONGs e no setor público, com ênfase em políticas de redução da pobreza urbana, planejamento participativo e sustentabilidade ambiental.

Mesmo com a agenda apertada, ele tirou um tempinho para conversar com a Unidade de Comunicação.

Entrevista

Arquitetura e Urbanismo são temas que nunca saem da pauta – a humanidade se desenvolve cada vez mais rápido e nem sempre as cidades acompanham esse desenvolvimento. Discutir a funcionalidade dos centros urbanos é uma tendência atual e que deve se intensificar no futuro, pois logo não teremos mais espaço físico para expandir, o que implica num recondicionamento do espaço que já temos e ocupamos. Para entender um pouco do processo de urbanização, precisamos voltar aos primórdios.

Os primeiros registros da transição da cidade feudal para a cidade moderna datam do séc. XIX, quando os escritores Charles Dickens e Honoré de Balzac abordaram as novas cidades, de forma artística, em seus livros.

“Apesar de não terem formato científico, as obras de Dickens e Balzac são registros históricos muito valiosos sobre a nova realidade urbana das sociedades inglesa e francesa do século XIX. Talvez o primeiro registro científico da funcionalidade social da cidade moderna foi o livro ‘A situação da classe trabalhadora da Inglaterra’, de Friedrich Engels, de 1845. Nele, o autor descreve com muito detalhe, incluindo planos dos bairros e análises geográficas da cidade, as condições paupérrimas do proletariado na primeira fase do capitalismo no centro do maior império da história, inserindo essa análise no contexto social da época” – explica Jordi, sobre os primeiros registros sobre Arquitetura e Urbanismo.

A corrente positivista dominou o urbanismo até a década de 1960, momento em começou a questionar-se o urbanismo moderno, de um lado na vertente pós-moderna (focada na estética), do outro em base ao pensamento crítico (focada na sociologia e na economia política). A autora que inaugurou a crítica ao urbanismo funcionalista-rodoviarista foi a escritora norte-americana Jane Jacobs. O filósofo francês Henri Lefebvre também teve, a partir de 1968, uma importante contribuição à reforma do urbanismo contemporâneo.

“A funcionalidade urbanística foi uma preocupação central do movimento moderno. Quando esse movimento foi questionado e desestruturado entre 1970 e 1990, o que ficou foi uma funcionalidade baseada nas leis do mercado, dando lugar ao crescimento disperso e aparentemente caótico das cidades que temos hoje. Essas mesmas leis do mercado, influenciadas por uma visão rodoviarista e patrimonialista, é o que causou os problemas atuais de trânsito” – comenta, sobre o crescimento desordenado das cidades.

Para o professor, a recuperação da funcionalidade urbanística não deve seguir as receitas funcionalistas do século passado, pois esse modelo se tornou obsoleto. A nova funcionalidade, de acordo com Jordi, deve seguir fórmulas mais flexíveis, criativas, com controle social da gestão, principalmente no que refere ao mercado imobiliário.

“O resultado da nova funcionalidade seria uma economia mais inovadora e dinâmica, um trânsito mais fluído e uma redução das desigualdades sociais. Isso é o que aprendemos com cidades inovadoras como Amsterdã, Copenhagen, Zurich, San Francisco etc”.

Questionado sobre a possibilidade de mudança nas cidades já consolidadas, o professor acredita que caso haja um planejamento de longo prazo, é possível mudar o panorama atual dos centros urbanos.

“É possível, se aplicado o Estatuto da Cidade, aliado a um planejamento firme e de longo prazo. É um grande desafio se consideramos a pressão que os políticos sofrem do setor imobiliário –  o que é normal, pois o planejamento limita a liberdade de empreender. As práticas especulativas desse setor são responsáveis não só pelo crescimento desordenado, também pelos altos preços de aluguel e de aquisição de bens imóveis, um fator que atrapalha a economia da cidade”.

A conta é simples: quanto mais dinheiro dedicamos ao aluguel e compra de imóveis, menos temos para gastar em outros bens de consumo. Logo, em muitos espaços, a urbanização tomou o rumo da informalidade – um reflexo, segundo o professor, da especulação imobiliária.

“Os altos preços dos imóveis causam o crescimento informal, as chamadas favelas, pois os salários simplesmente são insuficientes para pagar um aluguel de uma casa ou apartamento na cidade formal. Esses bairros não surgem de uma escolha dos moradores, são o resultado de falta de escolha. Quando a política for mais independente do setor imobiliário, com participação da população no Plano Diretor da cidade e com mais recursos para contratar técnicos e para fiscalizar, teremos mudanças significativas” – explica.

Essa participação cidadã, inclusive, reduziria o nível de corrupção, na visão do professor. Entretanto, vemos uma política habitacional guiada pelos interesses econômicos no setor de moradia.

“Sempre foi assim (crescimento da cidade guiado pelos grupos econômicos), porém em maior ou menor grau em função da transparência e da participação cidadã. Uma grande empresa que corrompe políticos para seu próprio benefício só atrapalha o desenvolvimento econômico e social da cidade. As grandes empresas podem contribuir ou atrapalhar, depende de se o jogo é limpo ou sujo. Isso inclui os grandes proprietários de bens imobiliários (que habitualmente são bancos), as incorporadoras e as construtoras. Quando os cidadãos são conscientes disso, podem pressionar para que haja maior transparência e controle. O poder judiciário também tem um papel importante, pois existe legislação suficiente. A lei de parcelamento do solo urbano de 1979, a própria Constituição, o Estatuto da Cidade, a Lei de Mobilidade etc. Se os promotores e juízes tivessem um papel mais proativo nas relações entre políticos e grandes grupos imobiliários, a cidade veria um crescimento mais ordenado e uma economia mais dinâmica” – afirma.

Mas por que pensar na funcionalidade do espaço urbano?

“Uma boa distribuição física é importante, porém a funcionalidade vai além do físico. A história nos ensinou que os urbanistas, sozinhos, não são capazes de planejar bem a cidade, pois a sociedade é complexa demais e um urbanismo funcional é aquele que atende bem as necessidades e aspirações da sociedade. Uma boa equipe de urbanismo, além de dominar os aspectos estritamente técnicos, deve ser capaz de coletar e analisar informações, de desenhar e facilitar processos de participação, de equilibrar as cargas e benefícios econômicos decorrentes das mudanças no Plano Diretor e dos investimentos em serviços e infraestrutura e de elaborar códigos jurídicos adequados. Isso implica trabalhar de forma multidisciplinar: advogados, geógrafos, assistentes sociais e sociólogos, economistas, arquitetos. Quando se cumprem essas condições, podemos esperar uma boa funcionalidade da distribuição física”.

Casado com uma santa-mariense e doutorando na Universidade Federal de Santa Catarina, Jordi já esteve em diferentes cidades para pesquisar e buscar referências. Perguntado sobre quais aspectos da urbanização brasileira saltam aos olhos, ele é enfático: o contraste social.

“O que me chamou a atenção das cidades brasileiras é a marca da desigualdade no espaço urbano, o contraste entre as favelas e a cidade formal. Também chama a atenção o escasso planejamento da cidade formal. Quando comecei a estudar as cidades brasileiras, entendi que a desigualdade e o escasso planejamento não são problemas de desempenho dos técnicos. É um problema de escasso controle técnico e social das decisões que afetam o desenvolvimento urbano. As cidades cresceram em grande medida seguindo decisões individuais isoladas umas das outras. Quem são esses indivíduos? Normalmente são proprietários de terra parcelada em loteamentos, incorporadores e construtores que adquiriram terrenos e influíram a Prefeitura para que não haja fiscalização ou para que o Plano Diretor seja muito permissivo, sem considerar a capacidade da infraestrutura ou dos serviços públicos para receber a nova população. Esses mesmos indivíduos influíram o Plano Diretor para que permitam construir condomínios na periferia enquanto existem grandes espaços vazios no centro da cidade, subutilizados com expectativas de valorização. Os escassos técnicos das prefeituras, em vez de trabalhar com planejamento, apenas conseguem cumprir com uma burocracia excessiva. Nestas circunstâncias, a tecnocracia é apenas "uma piada de mal gosto", usando os termos do filósofo francês Henri Lefebvre. Quando alguém critica esse modelo individualista de crescimento urbano, muitas vezes é chamado de inimigo do desenvolvimento. Mas, é esse o desenvolvimento de deseja a maioria?” – questiona o professor.

Para ele, uma cultura que preza pelo individualismo resulta em parte da população acreditar que seja justa a concentração de terra na mão de poucas pessoas, mesmo que essas não façam total uso desse espaço, tornando a cidade ineficiente e segregando aqueles que não tem condições financeira para adquirir um bem imóvel.

“Muitos possivelmente pensam: ‘a terra é dele, deixa ele fazer o que ele quer, eu também não gostaria de ter limitações para empreender’. A consequência mais visível é a cidade sem ordem. Outra consequência é a desigualdade social decorrente do abismo criado entre a renda do trabalho e o preço da terra e da moradia, inflado pela especulação imobiliária. A cidade se torna ineficiente, com dificuldade para progredir porque a Prefeitura gasta muito em construir e manter infraestrutura na periferia enquanto há infraestrutura subutilizada no centro, porque os habitantes gastam muito em aluguel e transporte e não têm para gastar em outros setores produtivos da economia” – explica Jordi.

Após a longa conversa com o professor Jordi Sanchéz-Cuenca, fica o questionamento: para que(m) a cidade realmente funciona?

 

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